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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Lola

O que será o amanhã? Que será da minha realidade profissional, até as Olimpíadas, contaminada do jeito que estou, correndo-me, nas calibrosas veias, a monstruosa, ultrarresistente mutação da bactéria da indisfarçável preguiça? Juro por minha mãe mortinha que não faço ideia. Dois mil e dezesseis é o ano da alegria, vou parar de trabalhar em dois mil e dezesseis, a senhora heard it through the grapevine, aposto meu apêndice em ótimo estado, estou praticando faz um tempinho já, desacelerando, como convém aos ‘na antevéspera’ da melhor idade, aqui e ali descolando as camadas de apego, os mais chegados lamentam, ‘tamanho gás, não faça isso, uma perda inaceitável, insubstituível!’, blá blá blá, há quem, sincera e honestamente, curta meu trabalho, há quem compartilhe até, meus profundos agradecimentos, não mereço a metade. On the other hand, tem gente que não vê a hora bendita, coisas do mundo, minha nêga. Perdida em pensamentos de aposentadoria (sua linda!), escancaro a janela do quartinho de escrevinhar baboseira, milimetricamente disposta sobre a bocarra aberta do velho notebook cuspindo as letrinhas e os acentos de que mais ou menos me valho, a ortografia me prega cada peça que só vendo, abro a janela e faça-se a luz por cima de textículos tão inúteis e esculhambados, rá rá rá, abra a janela, formosa mulher, para outra segunda-feira vendendo saúde, uma antipática a segunda-feira, vamos combinar, crachá de exibida, se bem que tem vez que tarda, quando o final de semana não vale o que gato enterra, a segunda-feira tarda, mas não se esquece de espanar a asa na fuça da gente, a bicha não falta nunca, uma indigestão, uma cólica, uma dor de dente, um siso para extirpar, impressionante, nada aflige a diligente, nada acomete a pétrea segundona, é a cara de bunda da funcionária do retrato. Entre preparar duas apostilinhas e atualizar o blog, I’ll take the latter, rá rá rá. Houve uma ocasião, mil anos atrás, em que fui observada, isso no tempo da Cultura Inglesa, minha chefa superpoderosa era Patrícia Brasileiro, na época, a Cultura tem esse big brother permanente, o coordenador na sua cola, espiando, um sufoco danado, essencial porém angustiante, pois bem, um belo dia, all of a sudden, Patrícia entrou na minha sala, uma turma de pequenos endiabradíssimos, fiquei muito a fim de fazer tudo muito certo, conforme o planejamento, claro que não deu certo, errei no requinte, uma lady atabalhoada de conceitos mal-ajambrados, seu feedback a respeito da aula, recordo-me de cada sílaba, mudou a minha prática pedagógica para sempre: acho que você tem que confiar mais no seu taco, na sua capacidade de improvisação, Adriana, não tenha tanto receio, você é uma grande professora, e já está pronta. Desde aquele dia, a senhora me acredite, relaxei os cornos, descontraí a testa e a musculatura da nuca, relativizei uns tantos gessos metodológicos, descartei dois terços de teoria equivocada, meus encontros com os meninos são de uma plasticidade alarmante, cabe um trem, um rinoceronte, tanta coisa a gente pinta e borda no calor do mágico instante, deixo a troca acontecer, serenamente, sob o transe do acaso, de uma circunstancial necessidade, necessity is the mother of all invention, as partes se encaixam feito um lego, se eu adivinhasse, teria me libertado antes.
A bicha não falta nunca. Por falar em bicha, amanheci romântica e pirada, Cole Porter nas alturas, night and day I’ve got you under my skin, Dione Warwick dando o tom da conversa. Cole Porter, um dos maiores músicos dos Estados Unidos da América do Norte, compositor de mão cheia de lirismo e graça, Cole Porter era outra bichinha complicada com uma poesia não menos densa, feito Sá-Carneiro, melhor um tiquinho, os bons ventos da vida boa, só renome e sofisticação, deram uma forcinha, o poeta elegante ancorou o bote, rá rá rá, no regaço generoso de uma moça das mais prestimosas, doida varrida por ele, tão apaixonada a pobrezinha, que topou posar de esposa e de cão de guia, cuidou dele, protegeu sua alma sensível, sua grandiosa obra, sua casa, suas finanças, lhe deu toda a condição de relacionar-se com quantos homens ele desejasse, quem um dia irá dizer que (não) existe razão nas coisas feitas pelo coração, minha senhora? Ninguém jamais ousará enfiar a mão nessa complexa cumbuca. Amor é consenso, consentimento, comparecimento. Existe um filme espetacular, que só fez sucesso aqui em casa, rá rá rá, chama-se De-Lovely – Vida e amores de Cole Porter, confesso que vi mesmo foi por causa do astro que faz o papel do outro astro, na muito bem construída película, película é tudo, adoro essa palavra película, rá rá rá, aquele fofo do Kevin Kline, perfeito na pele de Cole Porter, sou fã de Kevin Kline desde Um peixe chamado Wanda, coisas do mundo, minha nêga. Acabo de me lembrar do Xico Sá, um jornalista cearense porreta, um cronista gaiato de carteirinha, tão bacana ele, tão talentoso, que eu jurava que era pernambucano, rá rá rá, dia desses, peripécia do destino, assistindo a uma entrevista, sofri a brutal desilusão, como assim Ceará????, fiquei arrasada. Xico escreve para a Folha de São Paulo, sou tiete da sua coluna semanal, foi lá que aprendi a expressão vaza, Lola, vaza!. Quando uma amiga do Xico lhe confidencia um fortuito envolvimento com um gay, que nexo faz? tão sexy gay, rá rá rá, Xico dispara: vaza, Lola, vaza!, acho o máximo, sensacional, segundo porque é gozadíssimo, madame, primeiro porque, fatigados de compreender a roubada, reconhecemos tratar-se de um conselho deveras elucidativo. E sábio. Se a senhora conhece uma mulher que não sinta e demonstre, sem constrangimento, a mais profunda afeição por um, dois, três, quarenta e seis veados, a senhora, por favor, me apresente, que tô virgem dessa experiência, os gays são as criaturas mais adoráveis do mundo, do ponto-de-vista do respeito à humanidade, à individualidade, ao sentimento, à emoção, à opinião das pessoas, do ponto-de-vista da competência para zelar pelo feminino, do ponto-de-vista do otimismo e da alegria, vamos combinar. Tirando os pastores paladinos do oeste, restauradores da heterossexualidade perdida, rá rá rá, e as fêmeas fatais mulheres para mais de metro, ungidas pelo Altíssimo para resgatar dos escombros, do entulho de suntuoso rosado lixo de lamê e purpurina, o homossexual desgarrado, qualquer donzela dentro da normalidade, um e sessenta de altura por cinquenta e seis de peso, já piscou a pestana para um sujeito inconcluso, com alguma dificuldade de classificação, nesse angu de caroço. Alguns jovens vivenciam esse conflito, intimamente, sem pressões externas, ele batendo bola com ele mesmo, até uma determinada idade, meus caros, isso é bossa nova, isso é muito natural. Ao ser vivente seja dada a liberdade de gostar, de expressar-se amorosamente como lhe aprouver, é cruel, é assustadora essa interferência social e religiosa, numa seara tão particular, tão extraordinariamente bela e delicada, sagrada. Não tenho filhos herdeiros do legado da minha miséria, diria Machado, pimenta no fiofó dos outros é refresco, coisa e tal. Entretanto, por mais que procure, não consigo encontrar outro desassossego para um pai ou mãe, senão a dolorosa constatação da livre e espontânea opção do seu amado filho pela farsa, a ‘conveniência’ de uma mentira de sofrer e fazer sofrer, deve ser foda isso. Esse assunto já deu, visse? Merece o devido colo e descanso. Equilibrando-se nas etéreas vigas do faz-de-conta, de que diáfana seiva sobreviverá sua historinha de amor para boi dormir? Vaza ligeiro, Lola, vaza! Entre quatro paredes forradas de verdade concreta, a mão naquilo, aquilo na mão, e os pés no chão, que mal pode haver, né não?

ALL RIGHT WITH ME

It’s the wrong time and the wrong place
Though your face is charming
It’s the wrong face
It’s not his face, but such a charming face
That it’s all right with me
It’s the wrong song in the wrong style
Though your smile is lovely
It’s the wrong smile
It’s not his smile
But such a lovely smile
That it’s all right with me
You can’t know how happy I am
That we met
I’m strangely attracted to you
There’s someone I’m trying so hard to forget
Don’t you want to forget someone too?
It’s the wrong game with the wrong chips
Though your lips are tempting
They’re the wrong lips
They’re not his lips
But they’re so tempting lips
That if some night you’re free
It’s all right, it’s all right with me.

(Cole Porter)


Para meu amigo Marcelo.

5 comentários:

  1. E ri do começo ao fim! Muito boa Adriana, deu um show de bom humor e um pé na bunda do preconceito ;)

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  2. Grande crônica! Grandes temas! Se boas conversas dão boas crônica, é preciso afirmar que esta crônica (boa pra cacete!)dá uns bons contos sobre formas de amar, enganos e desenganos de amor. Afora um bom ensaio sobre a experiência de descobrir-se uma grande professora, uma professora "obra-prima" de gênio renascentista pra cima! Fazia tento que não vinha por aqui. Saudades dessas croniquinhas travessas, e de você.
    Beijo pra você e pro Ronaldo.
    Bruno.

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    1. Que visita boa, Bruno!! Lindo aceno! Um tanto hiperbólico, kkkkkkkkkkkk, faz parte... Obrigada, viu? Sabe que faz tempo que os amigos professores não trocam figurinha comigo por aqui... C'est la vie, né? A vida segue...

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  3. Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk eu ri muuuuuito, tia.
    Só assisti a uma aula sua e lembro de ter visto um show, mesmo p mim q detesto ingrês. Vc da show, tia.
    É Impossivel nao gostar da sua aula!!
    bjim
    Manu

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  4. ADRIANA, jurava que tinha comentado esse crônica linda e maravilhosa por demais. Aí, lembrei que na época eu era mais que enrustido, mentindo para mim mesmo e jurando que enganava toda a sociedade. Fiquei com receio de comentar no blog badalado da minha professorinha de inglês. "Não, se eu comentar as pessoas vão saber que eu sou..." BOBAGI! Deveria ter comentando, enfim, mais ainda há tempo. Amei tudo, todas as vírgulas e pontos e caracteres. Amei tanto, que "amostrei" essa crônica pra todos os meus amigos que assim como eu viviam em Nárnia. KKKKKKKK Gente, foi a diversão de muitos dos meus dias essa crônica. Enfim, necessitando de mais crônicas com assuntos coloridos, prometo fazer divulgação massiva e efetiva. <3

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